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  • Foto do escritorNelson Moleiro

A Tasca do Zé da Quintinha


Tasca Táscuela

Nasci a 14 de Maio de 1981, início da década de 80, talvez das décadas mais belas e frutíferas para se nascer na era moderna. Uma criança a crescer nos anos 80 era livre, já gozava de pequeníssimos detalhes tecnológicos, mas conseguia olhar e conviver com o mundo em redor. Acho que quem viveu a infância e adolescência nos anos 80 e 90, teve por um lado, a sorte de não ter vivido em décadas difíceis e de pobreza, que os nossos pais e avós viveram, mas também escapou à sociedade zombie que é a modernidade actual. Em puto tive a sorte de entrar em tascas! E quando falo de tascas, são mesmo aquelas típicas, com odor a vinho derramado, do mais pitoresco e genuíno que existe, da verdadeira e autêntica cultura popular. Os que nasceram depois dos anos 90 dificilmente irão perceber isto. Na época, um gajo não tinha telemóveis, internet, computadores, wi-fi, tudo o que agora é tido como dado adquirido. Se tivesses um Sony Walkman preso ao cinto eras o rei do bairro (vai ao Google e pesquisa, era um género de iPod, mas que funcionava com cassetes. Pois, também vais ter que procurar o que são cassetes, esquece então)! Eu era rei do Bairro das Grutas: Walkman amarelo à cintura e pastilha Gorila na boca, Mc Hammer e Vanilla Ice a bombar. Em época de férias não podias mandar SMS's aos amigos, tinhas de sair de casa e bater-lhes à porta. Jogar à bola na rua, no campo da Fiandeira, pescar lagostins na Lagoa Velha da Mata, construir fisgas para andar aos pássaros, ideias eram muitas, estaríamos aqui uma eternidade a debitá-las. O que fazem hoje os jovens? Descarregam mais um jogo ou aplicação qualquer no smartphone, e têm ataques de pânico e crises de ansiedade em locais sem wi-fi.

Bem, toda esta nota introdutória leva ao que venho falar e relembrar, as tascas. Os rapazes por vezes acompanhavam os pais e avós a estes locais, e era uma forma de ocupar o nosso tempo. Na Mira, se existia tasca de referência, esta era uma delas, o Zé da Quintinha. Situado na rua principal da então metrópole Mira de Aire, e bem perto do Campo da Bola, tinha um afluxo de clientes impressionante, alguns bêbedos também, eheh! Sempre convivi de perto com o dono, o Zé da Quintinha, e com os filhos, o Manel e o Quim, uns verdadeiros paródias daquela geração. O senhor Zé faleceu em 1999, a tasca encerrou, permanecendo de porta fechada e intacta durante décadas, tal e qual como foi deixada no dia de encerramento, com tudo o que lá ficou. Os filhos fizeram questão de preservar o local que o seu pai tanto estimou. Com o decorrer dos anos, alguns itens e mobiliário foram saindo, o pó foi assentando nos balcões, mesas e pipas de vinho, mas em pleno ano de 2016, a tasca está lá, igual ao que era, com os mesmos artigos e particularidades que a caracterizavam.

Há muito que falava ao Manel que um dia gostaria de revisitar a tasca do pai, e finalmente aconteceu. Impulsionado pelo blog Táscuela, combinámos no início de Setembro em abrir o Zé da Quintinha por uma tarde, reeditar todo o espaço e relembrar histórias de outros tempos, acompanhados por um bom vinho tinto, e alguns petiscos que eram servidos por lá. Pois é, roam-se de inveja, eu voltei a comer a mítica Sandes de Ovo com Chouriça da Ti Maria, mais de 20 anos depois!

Com o texto que escrevo, e imagens de alguns pormenores que lá permanecem, não pretendo tentar recriar o que era o Zé da Quintinha do passado, porque é impossível. Mira de Aire era uma autêntica cidade, um pólo da indústria têxtil, fértil em pessoas e movimento, e a tasca pelo final da tarde estava constantemente apinhada de gente! Apenas vou tentar relembrar aos que conheciam e frequentavam o estabelecimento, que tudo continua lá, apenas com algum desgaste do tempo. Agradeço ao Manel e ao Quim a disponibilidade que sempre demonstraram, e tendo falado com eles na altura sobre este assunto, mantenho a intenção e desejo pessoal, de criar um movimento que os convença a abrir a toda a população, por um dia, a Tasca do Zé da Quintinha. Penso que seria engraçado, e sou o primeiro a oferecer toda a ajuda e colaboração para levar a iniciativa avante. Toca a abrir a Caixa de Pandora!!!

Tasca Zé da Quintinha

A Tasca

Tasca Zé da Quintinha

Esta é uma imagem muito característica do balcão do Zé da Quintinha. Quem se aproximava do balcão deparava-se de imediato as pipas de vinho, o armário dos petiscos, os cartazes das "gajas" nuas, dos jogos do Mirense, tanto dos séniores no relvado como das camadas jovens na Fiandeira, e calendários característicos de tipografia da época (Tipografia Capaz). Como poderão ver, todas as garrafas de bagaço, gasosa, sumos, cerveja, etc, que se comercializavam na altura, permanecem lá. A máquina de café vintage e respectivo moinho, permanecem no seu local original. Na secção de galerias de fotos poderão ver toda uma compilação de pormenores muito saudosos. A gaveta dos trocos ainda tinha moedas, existem facturas (não electrónicas!) da época, e as contas que o Zé da Quintinha fazia de cabeça, anotadas em blocos de papel.

Mas quem era o Zé da Quintinha?

Zé da Quintinha

Sempre lhe chamaram Zé da Quintinha, porque durante anos trabalhou e cuidou da Quintinha, propriedade onde se situa a actual Junta de Freguesia e Casa da Cultura. O senhor Zé era um homem alto, super divertido, amigo das pessoas, e de uma sabedoria e humor popular invejável. Engane-se quem pensar que não existia respeito e educação num ambiente destes. Qualquer cliente que abusasse no uso de linguagem, ou que armasse mau estar, por embriaguez ou outro motivo, era convidado a sair porta fora. E quanto aos miúdos, o homem era cinco estrelas! Qualquer criança que entrasse naquele estabelecimento, tinha automaticamente um pires de tremoços e um copo de gasosa à sua frente. Neste aspecto, basta referir que eram servidos gratuitamente entre 10 a 20 kg de tremoços todas as semanas. O homem chegou na altura a comprar a um agricultor da Barrenta, 1200 quilos de tremoços secos, os quais cozia regularmente em panelões, num anexo para petiscos junto à tasca (devidamente legalizado pela ASAE e autoridades competentes, não fiquem a pensar coisas, ahah). Teve tremoços para dar por anos. O vinho, vim hoje a saber, iam buscá-lo em pipas aos Amiais, essa famosa região vinícola demarcada! Eram às centenas de litros ao final do mês, basta imaginar que só por exemplo em aguardente, saíam para o bucho dos clientes 5 litros por dia! Aquela malta abusava no mata-bicho! Mas pronto, eu na altura era mais gasosa (a Rical era a minha preferida), tremoços e jogo da malha, e sempre que podia, intrometia-me no jogo dos velhos. Realizavam-se ali verdadeiros torneios olímpicos, com medalhas gravadas e personalizadas (a do Reonildo aparece numa foto), com uns bons copos de traçado para afinar a vista e pontaria.

O aniversário do senhor Zé era a 19 de Outubro. Nesse dia, desde manhã até à noite, tudo o que era servido na tasca era de borla. No dia que fez 50 anos, por volta das 7 da tarde, colocou um pipo de 200 litros de vinho em cima do tractor, com os "Marretas" (grupo musical Mirense) a tocar, e deu a volta à Mira. Obviamente, o barril retornou seco à tasca.

"O Filho dum Mocho"

Muitas eram as larachas populares, brincadeiras e trocadilhos que o Zé da Quintinha fazia aos putos. Existem três situações clássicas que me recordo plenamente, sendo a do filho dum mocho a mais conhecida de muita gente. "Clientes" habituais da altura, como eu, ou o Marcos Esquininha, Tiago da Noiva, Zé Gato e Rui da Renault, certamente recordarão estes episódios.

 

- "Então oh miúdo, ouve lá, és filho dum mocho?"

- "Conheces melhor o teu pai no meio dos burros, ou no meio dos homens?"

- Zé da Quintinha -

 

Situando os mais desatentos e desconhecedores, segundo nos diziam, ou existiam mochos ou cornudos! Em resposta a esta pergunta os miúdos caíam quase todos pela certa. "Não sou nada filho de um mocho!...Olha, então se não és filho de um mocho, o teu pai é cornudo!". Tinhas que ser já um puto conhecedor do underground para superar isto!

A outra brincadeira que o Zé da Quintinha fazia aos putos, era perguntar se conheciam melhor o pai no meio dos burros, ou no meio dos homens. Mais uma vez, tinhas que ser uma criança batida. A maioria dizia no meio dos homens, e lá se tinha que explicar ao rapaz que era no meio dos burros que o pai se diferenciava, porque era homem.

Outro episódio engraçado que se passava dentro daquele teatro popular, era quando alguém se chegava ao balcão e pedia alguma coisa para por na boca. O Zé da Quintinha sacava de imediato de um freio de burro, e colocava-o em cima do balcão! Ahahah! A única vez que lhe correu mal a brincadeira, foi com dois homens de passagem, que no início riram imenso, mas depois mostraram o cartão de inspectores de actividades económicas, a actual ASAE. Sorte do Zé da Quintinha, naquele dia, era dia de folga.

A Moeda de 50 escudos

Quem não se lembra da famosa moeda de 50 escudos? Pregada ao chão, à entrada, estrategicamente colocada para observar a cara de pau das pessoas ao tentar apanhá-la para meter ao bolso. Muito bom!

O Presunto de Pedra

Muitas fatias tentaram tirar a este presunto. Um verdadeiro clássico. A todos os visitantes era oferecida a possibilidade de se servirem à discrição. Muitos novatos tentaram passar a faca por este apetitoso presunto de pedra. Ainda lá está, bem pregado ao tecto, junto ao balcão.

A mítica Sandes de Ovo e Chouriça do Zé da Quintinha

Ficou assim famosa, por este nome. Esta sandes tão conhecida em Mira de Aire, é obra das mãozinhas da Ti Maria, mulher do Zé da Quintinha. Recordo-me plenamente de a ver descer aqueles degraus e entregar as sandes em mão. Era lá em cima, na casa dela, que na sua frigideira de sempre e onde passaram milhares de chouriças e ovos, cozinhava as sandes que enchiam a barriga e coração dos Mirenses. Muito simples, chouriça directa na frigideira, e colocava-lhe o ovo em cima, com o carinho e saber de décadas. Depois de vir da escola, era um lanche maravilhoso, acompanhado com uma gasosa Rical ou um Sumol! Tanta sandes que comi! Noutras alturas, mesmo antes de ir para os treinos nas camadas jovens do Mirense na Fiandeira, passava lá, já com as minhas clássicas chuteiras Aronick calçadas, e ingeria esta proteína pré-treino! O sistema era o antigo, "meta na conta, o meu pai depois passa aí e paga"! Este era o petisco mais reconhecido no Zé da Quintinha, mas existiam também as punhetas de chibo (queijos frescos), tremoços, outras sandes, etc, sem esquecer as enormes patuscadas que se faziam no anexo, onde estava o assador. Chanfana, caracóis, mioleiras, capado, entre outros bons petiscos! Nesta tarde que passámos a reviver o passado, fiz questão de pedir o enorme favor à dona Maria, de uma vez mais, nos presentear com a sua sandes de ovo e chouriça. Apreciem e salivem ao ver as fotos, enquanto a memória é reavivada, e nos apercebemos do quanto brutais eram estas sandochas!

Muitas histórias e memórias têm os Mirenses deste local. Será que voltará a abrir um dia? Não sei. Mas tenho a plena certeza que gostaria de ver o Zé da Quintinha aberto à população. Nem que fosse por um dia ou fim-de-semana. As restantes fotos encontram-se nesta galeria de fotos final. Um bem haja a todos, vai um traçadinho?

Galeria de Fotos

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